Pessoas da Lapa
Há um ano e meio moro na Lapa, bairro no centro do Rio de Janeiro, em um apartamento de 18 metros quadrados em um prédio cuja síndica é uma ranzinza mas que tem bons vizinhos como Dona Mary (pronuncia-se "Méri"), que vive em um apartamento igual ao meu há duas janelas de distância e que precisa descer na portaria para ter sinal de telefone não sei porquê.
Vez ou outra papeamos de janela a janela sem precisar do eletrônico, e outras nos encontramos pela calçada e ela com seu óculos da moda. Só sei que nas inúmeras vezes que me aventuro por aqui e ali desse bairro, seja para ir ao enorme mercado popular da próxima quadra, ou à padaria do outro lado que até há pouco não aceitava cartão, ou no bar da esquina que serve comida até três da manhã mas que a clientela são idosas madrugada a fora e onde compro um refrigerante baratinho, sempre tem algo bom pra ver.
Não sei se bom, mas interessante, afinal o centro também é lar para os entre aspas desajustados ou todos aqueles que o poder público não faz questão de ver.
Mas entre uma legião de idosos que vivem aqui desde quando a Lapa era o boom da cidade até os jovens gays que ocupam os pequenos baratos apartamentos e as academias da região, Lapa acolhe a todos. Do jeito carioca de acolher, com muito samba, brigas de madrugada, torcida do Flamengo e os bares cheios. Os turistas e os afortunados da zona sul descem para cá vivenciar um pouco deste exótico, mas somente às sextas-feiras. Os mais aventureiros, às quintas ou sábados.
Em alguns pontos têm shows de drags, como numa casa na rua de trás da minha que tem o nome de Buraco e faz jus a ele. Centenária. O camarim tem o charme de um calabouço, e essa é a sua graça.
Mais adiante tem o Bairro de Fátima, um recanto de paz e familiar entre a Lapa e Santa Teresa, onde almoço em uma padaria gastando 10 reais mesmo quando peço para entregar em casa, já que não cobram taxas. O menu é sempre o mesmo: arroz, feijão, farofa e omelete só de queijo. Única opção para um vegetariano se lembrar de pedir para tirar o presunto do omelete.
Aos sábados aqui tem feira, logo ao final da rua. Comprei ali algumas camisas de botão também por 10 reais, meu orçamento máximo para uma porção de coisas, e umas velas na loja de bruxaria logo ao lado. Meu fogão de duas bocas também é de alguma das lojas da rua da feira, assim como minhas samambaias, ambas compradas num outro grande mercado mas que morreram muito em breve. As outras duas plantas, mais fortes mas que não sei o nome, vieram da floricultura dessa mesma encruzilhada.
Meu apartamento custa 500 reais ao mês, um milagre nos preços abusivos do centro carioca, e tem um video no youtube mostrando seu interior quando ainda não tinha dois empregos para custear móveis novos todos brancos. Minha cozinha é infestada de baratas, daquelas pequenas que ao menos não me causam tanto pavor, somente muitos sprays de veneno ao mês.
Logo quando mudei para cá, descobri que mal tinha água no apartamento porque os canos eram tão antigos que viraram pó e entupiram a tubulação; tão frágil que se rompeu na hora do reparo, que de uma saltou para duas semanas inesquecíveis. Hoje está tudo bem, e tenho azulejos de duas tonalidades em meu banheiro.
Apesar das idas e vindas, a Lapa ainda é uma grande incógnita. Ela é charmosa e cheia de pessoas e histórias, assim como ruas estranhas e mal frequentadas, e por vezes fico olhando pela janela em direção diagonal para ver os prédios da cidade. Diagonal pois se olho reto, vejo somente o apartamento de Dona Mary.
Desde os anos 2000 quando vinha para o Rio na infância, muitas vezes escondido no porta-malas com minha irmã mais nova (mas sem a tampa, não se preocupem) tamanho cheio estava o carro de crianças, sou apaixonado pelo Rio. Ficávamos na Glória, a um bairro de distância, onde meus quatro irmãos dividiam dois apartamentos na mesma rua, um de frente para o outro. Um grande, com sacada e piscina, outro pequeno praticamente sem janela num porão do prédio, algo comum nos antigos condomínios da cidade.
Sempre disse que viria para cá e moraria lá. Não cheguei lá mas estou por aqui, no bairro ao lado. Me pergunto o que tem mais para descobrir, ou se eu que fui preguiçoso para ainda não entrar em todas as portas misteriosas que tem por aí ou desfrutar a agenda cultural da zona central.
Às vezes culpo a falta de companhia para desvendar mais, mas gosto tanto de somente ficar na minha casinha olhando a vista torta ou dando voltas no quarteirão... Certo dia subi até Santa Teresa, outro bairro tão charmoso quanto velho no topo da colina ao lado, a pé somente com um fone de ouvido. Pensei que seria assaltado na subida e descida, pelas vias tortuosas que escolhi. Gosto de só ficar por aí.
Vim para o Rio de Janeiro há exatos oito anos e nove meses, e desde o alojamento da UFRRJ já passei pelo centro de Seropédica, Maria da Graça na zona norte, Bangu à oeste, Centro (o bairro dentro da zona) e agora Lapa. Será que o Rio já ofereceu tudo o que me podia?
Sou apaixonado por este lugar, ainda que não haja transporte nenhum possível entre minha kitnet e o meu trabalho, há alguns quilômetros e 30 minutos de caminhada de distância. Mas alguma coisa me diz que você não me quer mais por aqui.
Mas se um dia eu for, que saudade vou sentir.
