Carnaval e bruxaria a serviço do povo
Para além das origens pagãs do carnaval ou liturgia cristã nos tempos vindos, observar o carnaval de rua do Rio de Janeiro — em proximidade inédita, pra mim — , num Brasil pós-covid, me trouxe para um colo comum: a bruxaria.
Óbvio num primeiro olhar, num segundo se mostra excitante o festejo livre de amarras como sempre foi e pode ainda mais ser; cruzar a esquina com seios desnudos ou parcialmente cobertos com brilho, pernas masculinas em meia arrastão e a classe trabalhadora fazendo festa no vagão, sujo de bebida e porquê não?
Os dias de festa da carne me pareceram mais breves do que de costume, talvez porque agora me permiti tocar e talvez tenha sido tocado por essa mágica que sempre ouvi falarem que altera a fome, o sono, o tempo. Não que eu tenha me exaltado, pelo contrário, mas sair à rua, esse lugar-palco de tantas disputas políticas, tomado pelo povo despreocupado (aqueles que, de maneira ou outra, têm o privilégio da despreocupação breve), me fez notar a bruxaria viva em meio aos que talvez e provavelmente muito nunca sequer ouviram falar nela.
Sem rodeios: trabalhadores à rua, em dia útil, maquiados, fantasiados ou despidos das fantasias do cotidiano. Mulheres desnudas, homens montados, pessoal. O sexo explícito e tão vivo, que lindo! Beijo, suor, êxtase da música e dos ilícitos também. Nessa fração de tempo, o povo sabe o poder que tem.
Os poucos blocos por onde passei nada me pareceram muito distantes de um ritual. O batuque, os passos, a ciranda. As luzes, o fogo, a fumaça ainda que de um cigarro barato. O vinho do altar pode ser a cerveja que gruda o chão.
O fato é que a bruxaria que acredito é a ferramenta da margem; a liberdade oculta da norma! E isso não é o carnaval?
Permitido pelo Estado, quando os blocos celebram conseguir aquele alvará, mas ainda assim uma reunião orgânica do povo — quantos os grupos clandestinos já não ocuparam as ruas cariocas desde o fim do ano anterior?
Introspectivo que só, me apoiei numa árvore no Aterro do Flamengo, com meu bom guaraviton, e fiquei a observar o povo. Eu amo as pessoas. Eu amo a gente. E eu amo a bruxaria.
Essa rebeldia de confrontar a ordem, a igreja, o livro sagrado. Não por heresia, mas por liberdade de ser quem se é, ocupar onde quiser.
Se os rituais são uma ponte para o outro mundo, além da matéria e corpo, o carnaval de rua me parece abrir o mesmo portal; consciente ou não, é isso que fazem.
São muitas as ressalvas e problemáticas simbólicas e materiais dessa festa, mas hoje eu fico apenas com a possibilidade. Que todo ano as pessoas tenham esse compromisso de se encontrarem com a bruxaria.
